Segundo o STJ, sem lei específica não se deve exigir a apresentação de CND para homologação do plano recuperacional, mas Estados e Municípios ainda divergem sobre o tema.
Por muitos anos, o processo de recuperação judicial no Brasil avançou sem enfrentar uma de suas principais fragilidades: a necessidade de apresentação de certidão negativa de débito para homologação do plano de recuperação judicial, marcada pela ausência de mecanismos eficazes para tratar os débitos tributários das empresas em crise.
A exigência de apresentação de certidões negativas de débitos fiscais (as chamadas CNDs), imposta desde a promulgação da Lei 11.101/05 como condição vinculante para a homologação do plano de recuperação judicial, por muitos anos foi contemporizada pela jurisprudência diante da ausência de instrumentos eficazes para a renegociação de passivo fiscal para empresas em recuperação judicial.
Essa contradição entre a letra da lei e a realidade começou a ser enfrentada com mais seriedade a partir de janeiro de 2021, quando entrou em vigor a Lei nº 14.112/2020, que alterou parte da legislação de Recuperação Judicial e Falência (LRF). Desde então, a exigência de regularidade fiscal como condição para a concessão da recuperação judicial passou a ser efetivamente aplicada pelo Poder Judiciário, diante da introdução de novos instrumentos destinados a viabilizar a reestruturação do passivo tributário de empresas em crise.
A alteração da legislação trouxe instrumentos importantes para esse fim. A empresa em recuperação judicial passou a ter direito a parcelamentos específicos, com prazos que podem chegar a 120, 132 ou até 145 meses, conforme o porte e o perfil do devedor. Além disso, foi autorizada a realização de transações tributárias com a União, autarquias e fundações, nos moldes da chamada “Lei do Contribuinte Legal” (Lei nº 13.988/2020). Ou seja, o legislador criou um verdadeiro “caminho de saída” para que empresas em dificuldade pudessem se regularizar junto ao Fisco federal, sem inviabilizar sua reestruturação.
Essa mudança tem repercussão direta sobre a exigência da regularidade fiscal prevista no artigo 57 da Lei de Recuperação Judicial. Agora, a apresentação das certidões negativas (ou certidões positivas com efeito de negativa) deixou de ser vista como uma barreira irrealista e passou a integrar a lógica de um processo recuperacional completo, que sinaliza o efetivo saneamento da empresa, inclusive perante o Fisco que, em caso de descumprimento dos acordos de parcelamento ou das transações, podem requerer a falência da empresa, conforme prevê o artigo 73 da mesma lei.
A realidade, contudo, não é uniforme no território nacional. Enquanto a União já estruturou mecanismos próprios de negociação fiscal com empresas em recuperação judicial, os Estados e Municípios ainda avançam de forma desigual nesse tema, embora se observe uma relevante movimentação desses entes no sentido de instituir seus programas de transação tributária. Foi o caso do Estado de São Paulo, que não apenas replicou padrões da transação federal, através da Lei nº 17.843/2023, mas também buscou viabilizar uma regularização de débitos de forma mais acessível aos contribuintes em processo de recuperação judicial.
A exigência de regularidade fiscal perante esses entes depende, necessariamente, da edição de leis próprias, que permitam parcelamentos ou transações semelhantes aos federais. Em outras palavras, não seria possível exigir CND estadual ou municipal, uma vez que não há legislação específica que viabilize a regularização da empresa com a Receita. Trata-se de uma questão de coerência legislativa e de justiça econômica, uma vez que não se pode exigir o impossível de uma empresa em crise.
É nesse ponto que as discussões jurídicas se tornam mais sensíveis. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial nº 2.053.240/SP, estabeleceu um marco importante ao reconhecer que a apresentação de certidões negativas de débitos tributários (CNDs), ou de certidões positivas com efeito de negativas, passou a ser plenamente exigível no caso de débitos federais. No entanto, também assentou que essa mesma exigência não pode ser estendida automaticamente aos créditos de Estados e Municípios, em razão da ausência de lei específica por parte desses entes.
Na prática, o julgamento restabeleceu a força normativa do artigo 57 da Lei nº 11.101/2005, que condiciona a concessão da recuperação judicial à apresentação das certidões fiscais. Essa exigência, por muitos anos mitigada sob o argumento da ausência de instrumentos viáveis para parcelamento dos débitos, encontrou suporte na nova legislação federal, que criou um regime de parcelamento escalonado, além da possibilidade de transações tributárias com descontos significativos nos juros, multas e encargos legais.
Do ponto de vista da política fiscal, trata-se de uma tentativa clara de reequilibrar o papel do Fisco no processo recuperacional, reconhecendo que, embora seus créditos não se submetam ao plano, a reestruturação do passivo tributário é essencial para o efetivo soerguimento da empresa. O parcelamento e a transação previstos nos artigos 10-A, 10-B e 10-C da Lei nº 10.522/2002 não apenas tornam viável a emissão das certidões exigidas pela LRF, como também garantem previsibilidade ao Fisco e segurança jurídica ao devedor.
O julgamento do STJ também explicita um limite federativo importante. O tribunal deixou claro que a exigência de regularidade fiscal somente pode ser imposta com base em lei específica do ente federado titular do crédito, podendo se concluir que, se não houver lei estadual ou municipal que discipline o parcelamento de débitos em recuperação judicial — ainda que por simples adesão ao modelo federal —, não se pode exigir da empresa a apresentação de certidões relativas a esses tributos como condição para a concessão da recuperação.
O acórdão impõe uma importante mudança de postura das companhias em recuperação judicial. Se antes era comum adiar a discussão tributária ou deixar esse passivo “fora do radar” do plano de recuperação, agora será necessário antecipar estratégias de regularização fiscal, especialmente em relação à União.
A discussão acerca da inexigibilidade de certidões negativas de débitos estaduais e municipais, contudo, poderá atrasar a concessão da recuperação judicial, podendo acarretar a retomada das execuções individuais e até pedidos de falência. Por outro lado, não se tratará de causa automática de convolação da recuperação em falência — a sanção prevista é a suspensão do processo até que o devedor comprove a regularidade.
A decisão do STJ materializa um novo patamar de maturidade institucional na interação entre direito tributário e recuperação judicial. Ao mesmo tempo em que reafirma a necessidade de as empresas buscarem a regularização integral de seus passivos, também impõe aos entes federativos o dever de legislar com responsabilidade e coerência. O equilíbrio entre arrecadação, viabilidade econômica e função social da empresa passa, agora, por um ambiente normativo mais claro, mais exigente e mais justo.
Artigo escrito por Ligia Cardoso Valente é Coordenadora da área de recuperação judicial do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
Mariana Rodrigues é especialista da área tributária administrativa do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
Giovana Galassi é advogada especialista da área de recuperação judicial do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
por Growth Comunicações




























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